Declarações de Paulo Guedes soam sinistras em nossa sociedade e mostra perfil do governo federal
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida comparativa consagrada, que permite classificar os países conforme seu grau de desenvolvimento. Concebido nos anos 1990 pelos economistas Amartya Sen e Mahbu ul Haq, o IDH é usado há mais de 25 anos pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em seus relatórios anuais.
Ainda que não considere aspectos hoje considerados essenciais, como igualdade de gênero e questões ambientais, o IDH continua sendo amplamente usado por agregar três indicadores de padrão de vida fundamentais: expectativa de vida ao nascer, educação (anos médios de estudo e anos esperados de escolaridade) e renda per capita.
Recentemente, à renda per capita foram adicionadas outras dimensões, como a desigualdade e a paridade de poder de compra, numa tentativa de eliminar as diferenças entre o custo de vida de um país para o outro, dando origem ao IDHAD.
Nessa nova metodologia, os países são classificados em quatro categorias: os muito altos (tipicamente países escandinavos), altos (outros países europeus, mas também nossos vizinhos do Cone Sul), médios e baixos IDH.
Em 2019, o Brasil ocupava a 88ª posição, acima apenas da Bolívia na América do Sul. Já não tínhamos um IDH invejável, mas, nessa nova versão, somos, entre os cem primeiros países no ranking, o que mais perda sofre, 25%, o dobro dos demais países sul-americanos. Nossa desigualdade é brutal.
Nossa moeda se desvalorizou, nossa renda per capita diminuiu. Para piorar, a principal alternativa para a correção da desigualdade e o desenvolvimento sustentável –o acesso à educação de qualidade–retrocedeu no nosso caso, tornando-nos ainda menos competitivos e produtivos, em tempos da 4ª Revolução Industrial e da era digital.
Mas, pelo menos, estávamos envelhecendo. Não mais.
A pandemia no Brasil se transformou em uma sindemia, a convergência da crise sanitária com as crises social, econômica, alimentar, entre outras, contribuindo para aprofundar a desigualdade.
Alguns brasileiros têm teto; outros, viadutos. Alguns comem à vontade; outros apenas têm vontade de comer. Alguns lutam pela vacina para todos; outros desprezam as mortes. Alguns usam máscaras; outros deixaram-nas cair e escancaram preconceitos.
Não bastassem as 400 mil mortes, os jovens desempregados e desalentados, os 55% da população com insegurança alimentar e os 20 milhões de brasileiros famintos. A letalidade da Covid-19 afetou, sobretudo, os idosos. Ana Amélia Camarano, pesquisadora sênior do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), nos ensina que em 2020, dos quase 200 mil óbitos, 77,6% foram entre eles. Na comparação com 2019, houve uma perda de cerca de dois anos na expectativa de vida.
Por tudo isso, as declarações recentes de Paulo Guedes, ministro da Economia, soam sinistras. A culpa agora é dos brasileiros que teimam em envelhecer.
Mais do que nunca, é preciso buscar valores que nos tragam de volta a perspectiva da vida e da longevidade. Não faz nenhum sentido imaginar que uma população que envelhece seja um ônus para o país.
A economia e a previdência social brasileiras somente se sustentarão se apostarmos na vida, na educação, na saúde de qualidade, no cuidado ao longo da vida, em programas sociais de inclusão que reduzam a desigualdade e aumentem as oportunidades.
Não fossem as políticas sociais que resistem, como o Sistema Único de Saúde (SUS), nossas perdas de vidas teriam sido ainda mais avassaladoras. Chega de tratar brasileiros idosos como seres descartáveis.
Senhor ministro, a má gestão da coisa pública é que é o problema, não a longevidade.
ALEXANDRE KALACHE é Médico gerontólogo, presidente do Centro Internacional de Longevidade no Brasil (ILC-BR); KARLA GIACOMIN é Geriatra, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e vice-presidente do Centro Internacional da Longevidade (ILC) no Brasil
Publicado originalmente em Folha de São Paulo
Comments