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Artigo: “Pazuello, burocrata do morticínio”, por Thiago Amparo

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Quando 439 mil mortes se tornam rituais burocráticos banais, onde fica a dor? E mais: sobre quem recai a responsabilidade? Entre ofícios ao vento e secretariados sem rosto, o que vimos na CPI da Covid-19 nesta quarta-feira (19) foi a farda do morticínio: um Pazuello encarnando a figura do burocrata que diz não receber ordem de ninguém, mas omite que quem dava a ordem era ele mesmo e o presidente da República.

É pelo governo de ninguém —a essência da burocracia da morte— que se constrói a banalidade do mal. “O presidente nunca me deu ordens diretas para nada”. “Todos os órgãos de controle” teriam rejeitado a Pfizer”. “Se tivéssemos sabido antes [sobre Manaus], poderíamos ter agido antes”. Manaus teria durado três dias. Essas foram (algumas das) mentiras de Pazuello diante da CPI, todas elas apontando para a falsa ideia de que a matança seria um crime sem autor.

Não há dúvida de que “a essência” do morticínio, nos ensina Hannah Arendt sobre o nazista Adolf Eichmann, é “transformar homens em funcionários e meras engrenagens.” Pazuello encarna a banalidade do mal, porque finge não ver que atos e omissões suas são a própria razão pela qual estas mortes existem. Pois são. É graças à burocracia científica que temos a vacina a nos salvar todos os dias. Por Pazuello, teríamos apenas a burocracia da morte.

Não nos enganemos: por trás desta atuação, há um emaranhado de atos de governo sobre os quais Pazuello há de responder. O ex-ministro ignorou alertas sobre falta de oxigênio em Manaus; lançou em janeiro o aplicativo do tratamento precoce sobre o qual desconversou; mostrou saber muito bem sobre falta de oxigênio e sobre a lentidão na compra da vacina; não coordenou municípios e estados. À CPI, cabe discursar menos e inquirir mais e melhor.

Pazuello é o arquiteto da burocracia onde se morre de sufocamento fingindo ser um mero soldado a cumprir ordens de ninguém. Responsabilizá-lo é necessário para que possamos respirar.

Thiago Amparo é Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Publicado originalmente em Folha de São Paulo em 20 de maio de 2021.

 

 

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