Causou surpresa a intensidade e a velocidade da procura do empréstimo consignado por beneficiários do Auxílio Brasil e de outros programas sociais de amparo a vulneráveis. Logo nos três primeiros dias, a Caixa registrou 700 mil pedidos, somando R$ 1,8 bilhão, com valor médio de R$ 2.600 por pessoa. Na modalidade oferecida, a parcela mensal a ser paga pelo financiamento é automaticamente descontada do montante do benefício a que o contratante tem direito.
Mantido o ritmo de concessões de crédito, em um mês, cerca de sete milhões de pessoas que vivem em situação precária teriam contratado o empréstimo, movimentando quase R$ 20 bilhões. Oferecido entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais de 2022, o empréstimo consignado do Auxílio Brasil acomoda-se em brechas da legislação eleitoral, que veda a concessão de benefícios do tipo no período de eleições. A vedação visa coibir práticas com fins eleitoreiros, que possam configurar “compra” de votos.
Diante das condições e dos custos do financiamento, em período eleitoral, acendeu-se um alerta em relação às dificuldades para sua quitação no futuro. Um procurador do Ministério Público junto ao TCU (Tribunal de Contas da União) chegou a requerer ao órgão de controle a suspensão dos empréstimos. Alegou que o TCU deveria se pronunciar definitivamente sobre o assunto antes que a nova linha de crédito fosse liberada, “de modo a impedir sua utilização com finalidade meramente eleitoral e em detrimento das finalidades vinculadas do banco, relativas à proteção da segurança nacional ou ao atendimento de relevante interesse coletivo”.
O empréstimo consignado aos beneficiários do Auxílio Brasil está sendo oferecido pela Caixa e uma dezena de bancos e financeiras. Os maiores bancos privados preferiram ficar fora do programa, sob o argumento de era alto o “risco reputacional” — uma expressão elegante para dizer que preferiam não dar margem a acusações de exploração de vulneráveis. Na Caixa, o financiamento pode ser de até 24 meses, com prestação mensal limitada a R$ 160, que corresponde a 40% do Auxílio básico de R$ 400. A taxa de juros é de 3,45% mensais, próximo do limite de 3,5% fixado pelo governo.
Nessas condições, a taxa de juros anual chega a 50%. É taxa elevada, muito acima das cobradas em outros consignados. Para servidores públicos, os juros mensais são, em média, de 1,6%, enquanto aposentados e pensionistas do INSS pagam taxas de 1,85%. Consignado para o setor privado sai a 2,6% de juros mensais.
A intensa procura pelo consignado do Auxílio Brasil reflete o alto grau de inadimplência em que já vivem os beneficiários do programa de transferência de renda. É, de fato, nas faixas dos mais pobres que se concentram os números alarmantes do endividamento, que atinge, no momento, cerca de 80% das famílias brasileiras.
Para os chamados “negativados”, aqueles que já não conseguem quitar dívidas, o consignado é uma saída razoável para eliminar ou mitigar o endividamento. Mesmo com custo não tão baratos, é muito conveniente e racional trocar dívidas, por exemplo, no cartão de crédito, que chegam a cobrar juros de 350% ao ano. Também não deixa de ser correto fazer a dívida do consignado para comprar algum equipamento ou produtos que permitam o desenvolvimento de alguma atividade que produza renda, empreendendo um negócio.
São, porém, muitos os problemas e grandes os riscos desse tipo de financiamento. Para começar, o consignado do Auxílio Brasil e de outros programas de transferência de renda não é exatamente um empréstimo consignado.
A modalidade exige que exista um recebimento permanente e regular, como é, por exemplo, uma aposentadoria, o que não é o caso do Auxílio Brasil. Sua continuidade depende de decisões de governo ou da permanência do beneficiário no programa.
Se, por alguma razão, o contratante do empréstimo deixar o Auxílio Brasil e não mais receber a transferência do governo, é rompida a relação estabelecida no contrato. A quitação da dívida teria de de ser imediata ou, se não for feita, estará instalada uma situação de inadimplência.
A perspectiva de que ocorram quebras de pagamentos e de contratos é concreta, diante do tipo de público-alvo do consignado. Dependendo da amplitude em que o problema se apresente, pode representar uma questão fiscal relevante. No futuro, o governo, seja quem for o presidente, poderia ter de engolir as dívidas remanescentes e impagáveis, bancando os prejuízos das instituições financeiras envolvidas na concessão dos financiamentos.
Há notícias de que, driblando regras estabelecidas pelo governo, tem havido busca ativa de pessoas para contratar financiamentos, por representantes de instituições financeiras. Também têm sido oferecidos seguros e outros produtos em venda casada com o consignado, o que é vedado pela regulamentação do programa. Na primeira semana depois da liberação dos financiamentos, o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) relacionou mais de 2000 reclamações, em diversos canais e redes sociais. As principais se referem à dificuldade para contratar o empréstimo e falta de transparência nas negativas de concessão.
Foram identificados casos de assédio por representantes dos bancos, com tentativas de convencer pessoas a fechar o financiamento e “empurrar” outros produtos bancários. Estão de volta os famosos “pastinhas”, agentes de crédito informais a serviço dos bancos que operavam com consignado de aposentados e cuja atividade o Banco Central tentou regular, depois de excessos, abusos e promessas enganosas a possíveis beneficiários dos empréstimos.
A volta dos “pastinhas” é mais um mau sinal do que pode acontecer no futuro com mais esse esforço do presidente Bolsonaro de ganhar votos, na reta final das eleições.
Publicado originalmente em UOL Economia no dia 21 de outubro de 2022. Artigo de José Paulo Kupfer. Reprodução citada a fonte.
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