O camponês José Maria Orge desembarcou em Salvador em 1912, vindo da Galícia. Chegou em meio às obras do Porto de Salvador, que seria oficialmente inaugurado no ano seguinte.
Saiu caminhando e, ao bater os olhos em um casarão de três andares, perto da Associação Comercial da Bahia, ficou encantado. Nessa época, o Comércio concentrava a venda de artigos manufaturados que chegavam da Europa e dos Estados Unidos e abasteciam também as lojas dos poucos bairros em que havia atividade comercial.
Era a época dos caixeiros viajantes, que levavam mercadoria para outros municípios, sem muitos direitos trabalhistas. A jornada de trabalho de nove horas diárias só seria estabelecida por lei federal em 1927.
O imigrante espanhol montou a Sapataria Orge na Avenida Sete de Setembro, dentro desse contexto socioeconômico. Mas seu coração estava na Cidade Baixa. Em 1914, soube que o imóvel que lhe chamou a atenção estava vago.
Surgia o Colon, restaurante batizado em homenagem a Cristóvão Colombo, que tinha a finalidade de oferecer a quem trabalhava nos bancos, escritórios e lojas da região a oportunidade de saborear uma comida com tempero caseiro e um ambiente simples, mas organizado.
Começava a história do mais antigo restaurante em atividade de Salvador. O homônimo O Colon, do Forte de São Pedro, foi aberto antes, também por espanhóis, mas funciona como bar.
Foram migrantes do exterior, ou do interior da Bahia, que lançaram as bases para pratos e ambientes tradicionais que até hoje levam ao Comércio moradores de outros bairros desejosos por experiências únicas de sabores e um legado histórico. Pratos servidos por gente que veio em busca de um recomeço e acabaram se tornando referências soteropolitanas.
Jorge
Enquanto servia os cortes de carne que décadas depois renderiam ao seu restaurante uma citação no livro O Sumiço da santa, de Jorge Amado (1988), Orge usava os dois andares superiores como hospedaria para camponeses galegos que chegavam em busca de uma vida melhor.
“Meu avô trouxe muito espanhol para trabalhar com ele e com um certo tempo de trabalho ele dava os tempos da pessoa e ela ia montar o seu negócio”, conta Juan Carlos Orge, que administra o restaurante ao lado da esposa Mara Orge.
Foi assim que, em 1966, um ex-funcionário do restaurante fundava a empresa que produziria o Café América.
Desde a publicação do livro que cita o Colon, o principal prato da casa passou a figurar no cardápio como mal-assado de Jorge Amado. Desde outubro do ano passado, o restaurante funciona em um novo endereço, na Rua Conselheiro Saraiva, 19.
sede tradicional foi abandonada depois que o tremor de terra registrado em Salvador, em 30 de agosto do ano passado, deixou rachaduras nas paredes.
Antes mesmo de mudar de casa, o Colon teve que se adaptar aos novos tempos trazidos pela pandemia. “Oferecemos também uns pratos mais rápidos, não esquecendo a sua identidade, os mal-assados e filés, que já são uma tradição”, conta Mara, que comanda a cozinha do restaurante desde 1998.
“O que eu vejo na gastronomia hoje é que os clientes querem uma gastronomia leve, muita salada, grelhados”, afirma.
Sabores e tradições
Quando o pagamento da conta de um cliente vem acompanhado de uma gorjeta, Andrea Perez Peleteiro puxa a corda de um sino e incentiva os funcionários ao redor a cantar o refrão: Olha a caixa, Manuel! Obrigado, meu amigo! Capricho!
O grito de guerra traz uma referência ao imigrante espanhol Manuel Perez Rajo, avô de Andrea, que montou uma lanchonete em 1930, ainda no porão da Associação Comercial, com a receita do pão com pernil que trouxe da Galícia.
Décadas depois, o negócio seria transferido para a Rua Pedro Rodrigues Bandeira, sob o nome Manolo do Pernil. Manolo era o nome do pai de Andrea. “A primeira lanchonete do Brasil a vender pernil somos nós”, orgulha-se Andrea.
A lanchonete que espalhou pela cidade a cultura de comer sanduíches de carne de porco chega a vender diariamente oito pernis inteiros. Andrea não consegue estimar quantas porções são feitas com cada peça, mas um pernil pesa em torno de 8 kg de carne.
As opções vão desde o simples pão com pernil a composições mais elaboradas, com queijo cuia e salada. Os lanches podem ser acompanhados por sucos e refrescos feitos a partir de frutas cultivadas pela própria família.
“Nosso pernil é a mistura da culinária espanhola com o tempero baiano”, orgulha-se Andrea, que toca o negócio da família em paralelo à conclusão de uma graduação em psicologia e o último estágio, na Maternidade Albert Sabin.
O balcão de Manolo é, também, um lugar para exercer a psicologia. Andrea usa sua inteligência emocional para motivar os funcionários, cativar os clientes e negociar com pedintes. A filha, de 16 anos, já está se tornando íntima do negócio que, eventualmente, vai administrar um dia.
Frequentado tanto por trabalhadores informais da área quanto por quem veste terno e gravata para trabalhar nos prédios em volta, como Clóvis Gonçalves, um ex-policial que fazia rondas no Comércio, conversava com o velho Manolo e depois se formou em direito e montou um escritório de advocacia.
“Ele não gostava de falar de política. Acho que era pela situação do seu país”, arrisca Clóvis. Quando o pai de Manolo chegou ao Brasil, a Espanha estava sob a ditadura de Miguel Primo de Rivera y Orbaneja.
E durante a maior parte da sua vida, Manolo acompanhou desde aqui as notícias de outra ditadura, a do general Franco, que assumiu o governo em 1938, durante a Guerra Civil Espanhola, e só deixou o poder em 1973, dois anos antes de sua morte.
Laboratório social
Por entre bancários, automóveis e ruas, o Comércio sempre foi também um grande laboratório social. Imigrantes empobrecidos da Europa tiveram a chance de começar uma nova vida poucos anos depois que a Abolição da Escravatura jogava ao mercado uma população que passou do trabalho forçado à falta de perspectiva profissional.
Não houve, para eles, uma indenização similar à que receberam do patrão espanhol os funcionários demitidos do Colon, para iniciar um negócio próprio.
No quadro da parede do mais antigo restaurante soteropolitano, a propósito, uma foto tomada em 1932 mostra a aglomeração de homens brancos de terno e gravata durante a inauguração da Praça Conde dos Arcos. A foto foi emoldurada depois que a família descobriu, por acaso, o rosto de José Maria Orge em meio à multidão.
O local onde o estabelecimento foi aberto em 1914, uma espécie de galpão da Associação Comercial da Bahia, funcionava até 1888 como cativeiro de escravos considerados perigosos.
A rua onde se situa Manolo, o Rei do Pernil, recebeu das autoridades o nome de Pedro Rodrigues Bandeira, integrante de uma família que fez fortuna comercializando africanos escravizados.
Bisneta de escravos, Mara Orge passeia o dedo indicador direito pelo seu braço esquerdo, em referência à sua origem, enquanto fala do orgulho de estar à frente do mais tradicional restaurante da cidade.
Os Perez do pernil e os Orge do Colon compartilham mais do que o gosto pela venda de refeições. Oriundas de povoados vizinhos da Galícia, as famílias desenvolveram por aqui laços de amizade e têm vida social juntas, acompanham o calvário do time do Galícia com solidariedade, visitam regularmente os estabelecimentos um do outro, ajudam-se quando há dificuldades.
Culinária mediterrânea
Até o ano passado, eles tinham ainda a companhia dos espanhóis da família Insuela, que comandaram por 30 anos o Torremolinos, restaurante de culinária mediterrânea na Rua Francisco Gonçalves. Nos fins de semana, a turma se juntava para ir jogar futebol em Itapuã.
Os donos do Torremolinos voltaram para a Espanha e venderam o restaurante para o baiano Marcos Almeida, que assumiu o negócio em janeiro deste ano.
“Eu mantive toda a tradição, não mudei nada. Os pratos típicos que são bem pedidos permaneceram”, declara Almeida.
As atrações principais do cardápio são o malassado, a moqueca cremosa, o arroz de polvo e o bacalhau à moda da casa. “O bom foi que eu permaneci com a cozinha, com o chef”, declara Almeida, que lista entre seus clientes advogados, gerentes de banco e funcionários públicos.
Almeida, que tinha uma distribuidora de alimentos, desenvolveu amizade com o antigo proprietário do Torremolinos. Quando a família que tocava o restaurante decidiu ir morar na Espanha, ele recebeu a proposta de tocar o empreendimento e se animou com a ideia.
Ainda não existiam a Avenida Paralela e o Centro Administrativo da Bahia em 1954. Era no Comércio que a vida soteropolitana pulsava, com a economia girando em torno dos armazéns e trapiches e o poder público dividido entre as secretarias na Cidade Baixa, e o Palácio do Rio Branco e a Câmara Municipal na Cidade Alta.
Juarez Zenóbio, que veio de São Félix tentar a vida na capital, recebeu de Luiz Formigli a proposta de montar uma bodega para atender os estivadores. Mas saco vazio não para em pé e um dia algum cliente pediu algo para comer.
Juarez foi comprar um pedaço de carne, preparado à sua maneira. Foi um sucesso e em 1955 era inaugurado o Restaurante Juarez, na área externa do Mercado do Ouro, imóvel que à época pertencia à família Amado Bahia
O restaurante, que desde o ano passado tem uma filial nas dependências do GBarbosa, é administrado desde 2015 por Agnoel Freitas, neto de Formigli, com a administração de Juliana Formigli na nova unidade.
Agnoel, cuida da parte burocrática, coloca o avental quando a cozinheira está de folga e cuida do relacionamento com os clientes, sua função original quando trabalhava como garçom, antes de assumir o comando.
“É o meu foco, eu amo atender as pessoas, conversar”, diz o empresário, que aguarda o fim da pandemia e das dificuldades financeiras para tirar do papel novos projetos. Por enquanto, tão sigilosos quanto os ingredientes que Juarez adicionou à carne quando serviu o seu primeiro prato aos estivadores.
Publicado em A Tarde, no dia 06 de junho de 2021.
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